"Era sempre assim, em cada um de seus frequentes pileques. Primeiro tinha aquela fase de esfuziante júbilo. Parecia-lhe o mundo perfeito e bom, a vida alegre e fácil, e naquela hora Mirandão tudo podia compreender e estimar, estabelecia-se entre ele e as demais criaturas um clima de comunhão total, mesmo entre ele e a fedida arraia-mijona, sua vizinha de cadeira. Ficava delicado, conversador, a imaginação extravasando, sem limites. A figura do estudante pobre, 'perpétuo estudante e perpetuamente sequioso', imagem por ele criada e da qual vivia, cedia lugar ao homem moço, importante e vitorioso, promovido a engenheiro-agrônomo, quando não a livre-docente da Escola, enumerando vantagens, galgando cargos e conquistando mulheres. Danava-se a contar histórias, e como as contava! Era um mestre da narrativa oral, criador de tipos e de suspense, um clássico da boa prosa.
Se a bebedeira prolongava, no entanto, ao fim da noite esse otimismo e essa euforia se esfumavam e, ao término da esbórnia, envolvia-se Mirandão em lástima e lamento, a flagelar-se, lancinante, em impiedosa auto-crítica, recordando a esposa vítima de sua degradação, os quatro filhos sem comida, toda a família ameaçada de despejo, e ele ali, nos antros de jogo e nos prostíbulos. 'Sou um miserável, um crápula, um canalha', alardeava Mirandão pungente, com remorsos e sem malícia, um moralista. Mas essa segunda e lamentosa fase só de raro acontecia, só em ocasiões de porres monumentais."
Salve a raridade dessa segunda fase e toda a canalhice jubilante de Mirandão!!!
Vivam os pileques do mundo!!! E o prazer do inconsciente!!!
(Mirandão é amigo de Vadinho, um dos maridos de Dona Flor.)
maravilhaaaaa!
ResponderExcluirViajar! Perder países!
ResponderExcluirSer outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu