terça-feira, 21 de julho de 2009

Homenagem a Mirandão

"Era sempre assim, em cada um de seus frequentes pileques. Primeiro tinha aquela fase de esfuziante júbilo. Parecia-lhe o mundo perfeito e bom, a vida alegre e fácil, e naquela hora Mirandão tudo podia compreender e estimar, estabelecia-se entre ele e as demais criaturas um clima de comunhão total, mesmo entre ele e a fedida arraia-mijona, sua vizinha de cadeira. Ficava delicado, conversador, a imaginação extravasando, sem limites. A figura do estudante pobre, 'perpétuo estudante e perpetuamente sequioso', imagem por ele criada e da qual vivia, cedia lugar ao homem moço, importante e vitorioso, promovido a engenheiro-agrônomo, quando não a livre-docente da Escola, enumerando vantagens, galgando cargos e conquistando mulheres. Danava-se a contar histórias, e como as contava! Era um mestre da narrativa oral, criador de tipos e de suspense, um clássico da boa prosa.
Se a bebedeira prolongava, no entanto, ao fim da noite esse otimismo e essa euforia se esfumavam e, ao término da esbórnia, envolvia-se Mirandão em lástima e lamento, a flagelar-se, lancinante, em impiedosa auto-crítica, recordando a esposa vítima de sua degradação, os quatro filhos sem comida, toda a família ameaçada de despejo, e ele ali, nos antros de jogo e nos prostíbulos. 'Sou um miserável, um crápula, um canalha', alardeava Mirandão pungente, com remorsos e sem malícia, um moralista. Mas essa segunda e lamentosa fase só de raro acontecia, só em ocasiões de porres monumentais."

Salve a raridade dessa segunda fase e toda a canalhice jubilante de Mirandão!!!
Vivam os pileques do mundo!!! E o prazer do inconsciente!!!

(Mirandão é amigo de Vadinho, um dos maridos de Dona Flor.)

2 comentários:

  1. Viajar! Perder países!
    Ser outro constantemente,
    Por a alma não ter raízes
    De viver de ver somente!
    Não pertencer nem a mim!
    Ir em frente, ir a seguir
    A ausência de ter um fim,
    E a ânsia de o conseguir!

    Viajar assim é viagem.
    Mas faço-o sem ter de meu
    Mais que o sonho da passagem.
    O resto é só terra e céu

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