terça-feira, 6 de outubro de 2009

Vida exacerbada

"Orgulho-me de sempre pressentir mudança de tempo. Há coisa no ar - o corpo avisa que virá algo novo e eu me alvoroço toda. Não sei para quê. Naquela mesma primavera ganhei a planta chamada prímula. É tão misteriosa que no seu mistério está contido o inexplicável da natureza. Aparentemente nada tem de singular. Mas no dia exato que começa a primavera as folhas morrem e em lugar delas nascem flores fechadas que têm um perfume feminino e masculino extremamente estonteador.
A gente está sentada perto e olhando distraída. E eis que elas vagarosamente vão se abrindo e entregando-se à nova estação sob nosso olhar de espantado: é a primavera que então se instala.
Mas quando vem o inverno eu dou e dou e dou. Agasalho muito. Aconchego ninhadas de pessoas no meu peito morno. E ouve-se barulho de quem toma sopa quente. Estou vivendo agora dias de chuva: já se aproxima eu dar.
Não vê que isto aqui é como filho nascendo? Dói. Dor exarcebada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar. E o sangue agradece. Respiro, respiro. (...)
Tenho falado muito em morte. Mas vou te falar no sopro da vida. Quando a pessoa já está sem respiração faz-se a respiração bucal: cola-se a boca na boca do outro e se respira. Essa troca de aspirações é uma das coisas mais belas que já ouvi dizerem da vida. Na verdade a beleza deste boca a boca está me ofuscando.
Oh, como tudo é incerto. E no entanto dentro da Ordem. Não sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte. A verdade última a gente nunca diz. Quem sabe de verdade que venha então. E fale. Ouviremos contritos ...... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero para mim o menino que vi com cabelos de arcanjo correndo atrás da bola. Eu queria somente olhar. O homem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia o quanto era belo e sei que sabia que eu não o queria para mim. Sorriu porque não sentiu ameaça alguma. É que os seres excepcionais em qualquer sentido estão sujeitos a mais perigos do que o comum das pessoas. Atravessei a rua e tomei um táxi. A brisa arrepiava-me os cabelos da nuca. E eu estava tão feliz que me encolhi no canto do táxi de medo porque a felicidade dói. E isto tudo causado pela visão do homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim - gosto é das pessoas um pouco feias e ao mesmo tempo harmoniosas, mas ele de certo modo dera-me muito com o sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu não entendia.
A coragam de viver: deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.
Calo-me.
Porque não sei qual é o meu segredo. Conta-me o teu, ensina-me sobre o segredo de cada um de nós. Não é segredo difamante. É apenas esse isto: segredo.
E não tem fórmulas." Clarisse Lispertor em Água Viva

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